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Mundo animado

O despertador, numa alegria saltitante descabida, avisa que o dia começou. O espelho, não tão alegre assim, me olha. Escovas de dentes, de cabelos, estão todos a postos, ansiosos para entrarem em ação. A cama me chama. Me imagino embrenhando-me em seus lençóis sedutores, desmanchando-me em sua preguiçosa grandeza. Ignoro-a. A gaveta da cômoda corpulenta emperra, avisando que alguém ali não tem pressa. Hora do café. Forno, micro-ondas, são todos muito espertos. Nada mais rege meus gestos além dos bips emitidos por eles. Nos entendemos muito bem. Procuro as chaves.

A voz do locutor me dá bom dia. Aperto um botão e sou engolida pela ferocidade que já fervilha lá fora. Cada motorista guia sua grande tartaruga, cujas pernas, muito curtas, movem-se a passos lentos. Estou alerta. As tartarugas parecem calmas, mas na menor distração, podem morder. Entre elas, vibram incessantemente sons agudinhos. Não sei exatamente o que me oprime. Redobro o estado de alerta. O que o locutor disse mesmo?

A porta se abre a alguns passos de alcançá-la - prefere não ser tocada - convidando-me a entrar. Em cada canto, por traz das sóbrias mesas, persianas e carpetes, algo misterioso se enconde. De vez em quando tudo ali me olha, e me sorri um sorriso dissimulado. Não sei exatamente o que me incomoda. Os ponteiros do relógio apontam para o último quarto das infinitas horas. Uma sinfonia desalinhada agita-se pelo tocar dos telefones. Hora do almoço. Sento. Quem passou por ali antes deixou sobre a mesa uma caixa de fósforos. Abro-a. Amontoados num pequeno espaço, os palitos aguardam, apáticos, pelo inevitável fim. Explosão de luz e imediato descarte separados por ínfimos segundos.

Entro no elevador e amontoo-me num pequeno espaço. Solto um minguado sorriso para o fósforo ao meu lado. O otimismo do discurso corporativo me entedia. Minha caneta, arisca, não quer escrever. A sinfonia desalinhada continua. O relógio me dá uma sarcástica piscadela. Olho ao redor. Nunca compreendi tão bem a cabeça de um fósforo. As opressoras engrenagens dos tempos modernos agora camuflam-se em códigos binários. Reunião no auditório. Solto mais um minguado sorriso para o fósforo ao meu lado.

A voz do locutor me dá boa noite. Cá estou, novamente confinada entre grandes tartarugas. Esta caixa é maior. Milhões de palitos confinados, lutando por algo que os levem a experimentar seu momento de explosão de luz. Céu e muros misturam-se na homogênea frieza de cinzas. Muros que reforçam a falibilidade de minha memória. Da imagem que havia ali restaram apenas vagos resquícios, que se embaralham entre inalcançáveis coloridos abstratos. Não sei bem o que me traz de volta à cena: se as potentes turbinas sob asas que passam sobre minha cabeça, se os infindáveis sons agudinhos que cortam minha janela, ou se as sirenes que adicionam ao caos a aflição de se abrir caminho onde parece impossível. O que o locutor disse mesmo?

Aperto um botão e sou acolhida pela solitude de meu lar. A cortina me recebe, dançando alegremente ao comando do vento. O espelho, não tão alegre assim, me olha. Sobre a mesa, um bilhete aborrecido me lembra que, por mais um dia, não atendi ao pedido do meu pai. Novamente bips regem meus gestos. Geladeiras, celulares. São todos muito espertos. A televisão também. Ela me oferece inúmeras opções, todas a minha inteira disposição. Nos entendemos muito bem. As escovas de dentes, de cabelos já não estão tão ansiosas. Parecem cansadas. Melancólica bagunça fria dos lençóis. A ausência faz presente quem ali não está. Não sei exatamente o que me aflige. A cama me chama. Desta vez, entrego-me a ela.


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