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"Rodin, Brancusi", de Waltercio Caldas: imagens que se abrem, vazios que nos olham



Linhas de aço inoxidável desenham no espaço um retângulo. Seus 200 centímetros de altura, em conjunto com seus 150 de profundidade e de largura, apresentam uma robustez que se impõe ao mesmo tempo que se desfaz, através da leveza criada pela transparência de um objeto totalmente vazado. Misturando-se ao espaço de modo que quem o olha perde-se em seus limites ardilosos, este volume, composto pela luz que o transpassa, é despretensioso, mas também provocador.

Em direção ao interior deste volume, hastes retas e curtas transpassam duas formas ovais, também vazadas. A leveza de uma parece pesar, curvando a linha na qual delicadamente se apoia. Já a leveza da outra faz curvar a linha na qual se apoia em um sutil movimento de suspensão. Impressas em pequenas placas de acrílico transparente as palavras “Brancusi” e “Rodin” apoiam-se em cada uma das hastes.

Um objeto apresentado de modo simples, claro, que nada vela, nem mesmo seu interior. Mas intrínseca a esta simplicidade revela-se uma complexidade. Assim define Waltercio Caldas seus próprios objetos: “simples o suficiente para que sejam suavemente complexos”.

Através da simplicidade, Caldas busca revelar o momento privilegiado do objeto: quando este ainda não é identificado pelo sujeito que o observa, sobrevivendo da sua própria capacidade de aparecer, da sua própria energia de aparecer. Assim, Caldas cria um tempo suspenso, tensionado, que paira entre o conhecido e o desconhecido na busca por um significado.

Neste instante, “Brancusi” e “Rodin” tornam-se mais do que palavras impressas. Tornam-se o que um signo verdadeiramente é, mais do que a união de um significado a um significante: “[...] um momento no processo de significação” (DE WAELHENS, 1970 apud FRAYZE-PEREIRA, 1984: 161). Chamam para o objeto o que está ausente, desmancham o excesso do sensível.

Auguste Rodin (1840 – 1917) e Constantin Brancusi (1876 – 1957): tradição e inovação juntas em um só elemento. Novamente instaura-se uma tensão. Eterna dicotomia presente na arte: figuração / abstração. Conceitos que se distanciam? A abstração não existiria sem a figuração. Ambos artistas dão a revelar a essência das formas com suas esculturas, seja na perfeição da figuração do primeiro, seja na redução da imagem a massas geometricamente simplificadas do segundo. Formas cuja essência desvelam imagens que se abrem, fazendo surgir entre um significado e um significante um terceiro elemento.

Imagens que se abrem, como as palavras, cujos conteúdos dependem de algo que está fora do sistema que as rege, a mercê do tempo e do sujeito; que não se limitam a conceitos “fechados” contidos em uma “caixa de representações”. Como no sonho, onde a apresentação, geralmente lacunar, une fragmentos, vestígios, seguindo uma desconcertante poética na qual invertem-se não apenas o tempo, que se rasga, mas também a lógica. Assim, rompe-se a “caixa de representações”. Uma única imagem pode conter todos os seus contrastes e todas as suas diferenças. Rompe-se a forma que encapa pensamentos.

Está criado o canal para se atingir o terceiro elemento, que se encontra entre o ponto de vista do sujeito e o perfil do objeto que se mostra. Que emerge apenas da suspensão do tempo, levando a uma significação eventualmente inédita, simbólica, que nasce da relação entre as partes que compõem seus objetos, o material, a cor, a forma, o vazio. Todas têm o mesmo valor, inclusive o olhar do sujeito que a observa, que articula suas peças como que em um jogo.

Assim mostra-se Rodin, Brancusi, da Série Veneza (1997): de vazios que aguardam serem acionados para que algo seja revelado. Um algo que ali não está, e que ao mesmo tempo afirma-se pela própria ausência: “[...] a privação (do visível) desencadeia, de maneira inteiramente inesperada (como um sintoma), a abertura de uma dialética (visual) que a ultrapassa, que a revela e que a amplia” (MERLEAU-PONTY, 1945 apud DIDI-HUBERMAN, 2010: 99).

E então, mais um vazio se explicita: a lacuna entre a dialética objeto / sujeito. Vê-se apenas o que se vê, ou vê-se para além do que se vê? Desta cisão emerge um entre, presente no infinito movimento da oscilação contraditória oriunda desta dialética:

[...] o pensamento não pode fixar-se num polo (coisa ou consciência, sujeito ou objeto, visível ou vidente, visível ou invisível, palavra ou silêncio), mas precisa sempre mover-se no entre-dois, sendo mais importante o mover-se do que o entre-dois, pois entre-dois poderia fazer supor dois termos positivos separáveis, enquanto o mover-se revela que a experiência e o pensamento são passagem de um termo por dentro do outro, passando pelos poros do outro, cada qual reenviando ao outro sem cessar. (CHAUI: 1994, 475)

Apenas assim o ato de ver se manifesta verdadeiramente, quando se abre em dois, quando o observador se dá conta de que ao mesmo tempo em que olha para um objeto (ou uma imagem), este também o observa: “O que vemos só vale – só vive – em nossos olhos pelo que nos olha” (Didi-Huberman, 2010: 29).

A sutileza de Caldas transcende o excesso do sensível. Linhas e curvas desmancham-se em vazios, e tomam o espaço. Não há mais distinção clara entre uma coisa e outra, como nossa embriologia, nossa biologia que, segundo Merleau-Ponty “[...] estão repletas de gradientes que não percebemos com exatidão como se distinguem daquilo que os clássicos chamavam ordem ou totalidade” (2004: 14).

O mesmo ocorre com o objeto e o corpo que o olha. O corpo, que ao mesmo tempo vê e é visível, é visível e sensível para si mesmo. Assim, ao se mover entre o objeto, “[...] ele mantém as coisas em círculo ao seu redor, elas são um anexo ou um prolongamento dele mesmo [...]” (MERLEAU-PONTY, 2004: 17). Corpo, objeto e espaço fazem parte do mesmo tecido, cuja trama constrói-se naquele momento único.

Nesta complexa fusão, o corpo que olha a obra de Caldas toma o espaço do volume e, envolvido pelo equilíbrio e perfeição propiciados pelas linhas e curvas, transforma-se em Homem Vitruviano, cânone das proporções perfeitas, espelhados na obra de Rodin. Unidade formal absoluta, como as formas essenciais de Brancusi. Unidade formal “[...] que iguala não apenas a forma e o significado, mas também a coisa e o espaço” (ARGAN, 1992: 463). Forma e significado se igualam, fazendo surgir um terceiro elemento. Formas e significados esgarçados. Imagens que se abrem, vazios que olham.

“É o intervalo, a fenda, o corte (normalmente saturado) que existe entre o esquema formal e o conceito de uma mensagem ou signo que Waltercio Caldas tenta trazer à cena” (BRITO, 2005: 342). Ao sujeito que aceita o convite de encarar verdadeiramente estas lacunas, entrando em um jogo cujos limites estéticos, temporais e espaciais estão constantemente em suspensa tensão, propicia-se o benefício de mergulhar em possibilidades infinitas, desconhecidas: “Como uma rede que se lança ao mar sem saber o que recolherá” (MERLEAU-PONTY, 2004: 14).

Assim é o trabalho de Caldas: uma obra que abre fendas, de modo a criar possibilidades novas para que as coisas se realizem, alimentando uma complexidade infinita. Vazios que privam e fendas que incomodam desencadeiam a abertura dialética, fazendo com que o sujeito se entregue ao infinito movimento da oscilação contraditória oriunda desta dialética, ou do mover-se entre-dois, como apontado por Chaui. E neste momento, segundo Caldas, o espectador começa a entender um pouco mais não a obra, mas a forma como ela se comporta.


Rodin, Brancusi, Série Veneza. Waltercio Caldas. 1997. Aço inoxidável e acrílico. 200cm x 150cm x 150cm. Estação Pinacoteca de São Paulo

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