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Sobre cisões e inquietamentos nas exposições “Desobediências poéticas” e “À nordeste”


Se a arte e a sociedade do final do século XIX até os anos 1980 estruturavam-se na linearidade do esquema tripartite produção - distribuição - consumo, regime denominado por Anne Cauquelin (2005) como de consumo, uma ruptura marca a contemporaneidade. Em um meio onde as ações são permeadas pela tecnologia, arte e sociedade estruturam-se em vastas redes conectadas virtualmente, inseridas, agora, no regime da comunicação. Neste caminho não mais linear, no qual limites espaciais e temporais são extrapolados, o que vale não é mais a origem da informação, cada vez mais inatingível, e sim o movimento que ela percorre ao estabelecer conexões. Isso aponta para o inevitável apagamento não apenas do sujeito, agora dissolvido em meio ao global, mas também da memória, dissolvida pela névoa da dúvida entre o real e o não real. E ambos, sujeito e memória, se encontram imersos em um universo onde os sentidos se perdem em meio a excessos. Em resposta a este cenário, vozes reverberam a revalorização das palavras e seus sentidos, da memória e da herança, em nome da reaproximação entre as pessoas. E para dar corpo a este movimento, a contação de história é instrumento ideal: “No momento em que se perde a confiança no excesso de imagens que varre o mundo, contar história se transforma em um jeito de se aproximar do outro e, na troca entre ambos, de gerar sentido em si e nesse outro” (Canton, 2009: p. 37). Uma destas vozes ecoou nas salas da Pinacoteca do Estado de São Paulo. Em duas das quatro obras que fizeram parte da exposição Grada Kilomba: desobediências poéticas, a artista portuguesa se apresenta ao espectador, ou melhor, se aproxima dele, retomando a tradição africana de contação de histórias. Nas duas videoinstalações, Illusions Vol. I, Narcissus and Echo (2017), e Illusions Vol. II, Oedipus (2018), Grada é vista, em uma tela menor, sentada, narrando duas histórias mitológicas à medida que são encenadas por atores em uma tela maior. Os tamanhos das telas e a forma como Grada olha para os personagens criam no espectador a sensação de estar presenciando uma cena ao vivo. A conexão entre narrador, atores e público se estabelece com a força de uma peça teatral. Nos dois mitos narrados, bem como nas outras duas instalações, Grada tece poeticamente uma trama na qual se refletem suas habilidades de escritora, psicóloga, pesquisadora e artista visual. Turvando os limites entre estas categorias, a artista cria cisões, e, consequentemente, amplia os significados de mitos, palavras e imagens, trazendo à luz as tão sensíveis questões sobre colonização, preconceito, memória, esquecimento e trauma, de forma que o espectador saia da experiência com, no mínimo, algumas fissuras alimentadas por perguntas como: Quem define o que é a verdade absoluta? Os traumas causados pelo colonialismo, vistos como uma doença, são adequadamente tratados na sociedade? Qual postura adotamos diante do racismo: não saber, não querer saber, não dever saber, ou saber o que há muito sabemos? Fazendo um paralelo com o sentido da palavra heimelich, cindido entre o paradoxo daquilo que é familiar e, ao mesmo tempo, oculto e perigoso, seu contrário, unheimlich, é definido por “tudo o que deveria permanecer secreto, oculto, mas apareceu” (Friedrich Schelling, apud Sigmund Freud, 2010: p. 338). Assim, ao estabelecer este canal gerador de novos sentidos, a obra de Grada faz se revelar no indivíduo aquilo que parecia estar no distante universal, causando um intenso inquietamento ao trazer à luz tudo o que deveria ter permanecido, ou parecia estar, secreto e oculto, mas veio à luz. Verdades absolutas também são colocadas em xeque, assim como elementos ocultos são trazidos à tona, na exposição À nordeste, ocorrida no Sesc 24 de Maio. Na mostra, as vozes de 160 artistas fazem coro à de Grada, em uma luta pela memória, pela aproximação entre as pessoas, por novas perspectivas e por “desobediências poéticas”. Enquanto a poética de Grada desobedece e desafia sentidos tão arraigados culturalmente, À nordeste, já de início, desobedece a própria gramática: a crase, aplicada de forma “incorreta” de acordo com a norma culta, reforça um sentido de localização geográfica, que carrega tanto a noção familiar de um povo e de uma cultura específica, quanto uma diferenciação oculta incômoda, inquieta, revelada quando o espectador é informado que o título da exposição partiu da provocação do artista cearense Yuri Firmeza: “À nordeste de quê?” A pergunta, que inevitavelmente traz à tona questões ideológicas capazes de acentuar preconceitos, é apenas uma das diversas cisões abertas na mostra. Romero Brito mistura-se a Portinari como em uma legítima feira, de modo que, não sem causar inquietamentos, supostas hierarquias, sejam conceituais, ou de suporte, dissolvem-se caoticamente em um único cenário. Por entre o espaço labiríntico da mostra, a riqueza artística de tudo que “está à nordeste” salta aos olhos do espectador, apresentando-se como um grande movimento de resistência contra visões colonizantes, violentas, excludentes e patriarcais. Deste modo, a arte contemporânea é capaz de explicitar aquilo que não pode, ou não quer ser visto; de trazer à tona preconceitos e a violência da marginalização; de desvelar vazios que insistem em se esconder por trás daquilo que aparentemente é tão familiar, mas quando revelados, são tão incômodos e inquietantes; de explicitar as cisões entre as quais o espectador é convidado a navegar, em busca de novos sentidos. Se a arte, segundo Jacques Lacan, seria “uma das formas de lidar com o vazio, [...] sendo [a arte] a própria indicação do vazio da Coisa” (Jorge, 2010: p. 50), o objeto artístico contemporâneo, agora despojado da beleza clássica, liberado da “função” contemplativa, rebaixado à banalidade do objeto e entregue à multiplicidade de referências própria à arte contemporânea, parece explicitar os vazios e as cisões presentes no caminho de um desconfortável universo flutuante, aberto constantemente a novas significações, inerente, na realidade, segundo Didi-Huberman (2010), a todo verdadeiro ato de ver.


REFERÊNCIAS

CANTON, Katia. Narrativas enviesadas. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2009.

CAUQUELIN, Anne. Arte contemporânea: uma introdução. São Paulo: Martins Fontes, 2005.

DIDI-HUBERMAN, Georges. Diante da Imagem: questões colocadas aos fins de uma história da arte. São Paulo: Editora 34, 2013.

FREUD, Sigmund. O inquietante. In: Sigmund Freud - Obras completas - Volume 14. História de uma neurose infantil (“O homem dos lobos”), além do princípio do prazer e outros textos (1917 - 1920). São Paulo: Companhia das Letras, 2010.

JORGE,Marco A. C. Testemunhos do inconsciente. In: JORGE, Marco A. C. e LIMA, Marcia M. (Orgs.). Saber fazer com o real - diálogos entre psicanálise e arte. Rio de Janeiro: Companhia de Freud, 2010.

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