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Arte contemporânea: novos paradigmas, novas percepções

“A arte contemporânea está constantemente nos convidando a aplaudir a destruição de valores que ainda prezamos.” Por meio dessa fala, o crítico de arte Leo Steinberg chama nossa atenção para os novos paradigmas propostos pela arte produzida a partir da segunda metade do século XX.

Uma mesa quase submersa por barquinhos de papel (“Tempestade noturna”, 2010 / 2011, de Sandra Pinto); bichos feitos de espuma (“Zootécnico”, 2009, de João Loureiro); um moedor de cana que se confunde com um carimbo (“Caldo impresso”, 2015, de Marepe); um objeto que guarda o paradoxo de conter nele várias referências, e de, justamente por isso, não ser nada se não ele próprio (“Poço”, 1967 / 1969, de Amélia Toledo)***: esses são apenas alguns exemplos diante dos quais a pergunta “Isso é arte?”, ou ainda a frase “Não entendi o que o artista quis dizer” frequentemente despontam, podendo ser vistas como os primeiros sinais de que nossos valores estão realmente sendo desafiados.

Aqui vale a referência a um conceito apresentado pelo historiador e crítico de arte Georges Didi-Huberman, que afirma que o ato de ver não se acaba na experimentação tátil de um objeto erguido diante do observador. O ato de ver, segundo o teórico, apenas se manifesta quando, movido por um sentimento de perda, abre-se em dois, ou seja, no momento em que o observador, inquieto, se dá conta de que ao mesmo tempo em que olha para um objeto (ou uma imagem), este também o observa: “O que vemos só vale – só vive – em nossos olhos pelo que nos olha” (Didi-Huberman, 2010: p. 29).

Para entendermos o conceito de “ser olhado” por uma imagem, é fundamental enxergarmos as imagens como possibilidades de nos abrimos ao novo, ao desconhecido. Naturalmente, esse ato não se faz sem dor, uma vez que, para tanto, é necessário renunciarmos ao conforto originário do reconhecimento imediato de um sentido preestabelecido, ou de um padrão que reforce os valores considerados por nós como legitimadores da arte. Não em vão, o professor e psicanalista João A. Frayze-Pereira afirma: “Destacar-se dos pontos fixos, ainda que sob as imensas asas da imaginação, é um ato doloroso: o ato poético. É da dor da solidão de quem chega ao novo sem saber bem por quê. É a dor intrínseca à arte” (2005: p. 282).

Mas é justamente sobre essa perda, sobre os vazios que toda imagem carrega e que aguardam para serem acionados pelo observador de que fala Didi-Huberman. É justamente sob eles que se vela um caminho capaz de acessar uma outra forma de percepção, que não depende unicamente de um referencial direto que garanta a conexão entre a representação e a coisa representada de forma imediata. É nessa lacuna, nesse vazio, agora explicitado pela arte contemporânea, que habitam “[...] representações jamais inteiramente representáveis, essas visibilidades ao mesmo tempo manifestas e invisíveis” (Foucault, 1995: p. 259); que surge uma linguagem “[...] proveniente do querer e da força, mais do que dessa memória que reduplica a representação” (Foucault, 1995: p. 305).

Apenas quando nos abrimos a esse novo, quando nos entregamos à dialética “olhar e ser olhado”, barquinhos de papel são capazes de gerar percepções e sensações inéditas, que circulam em um movimento infinito em meio a um processo no qual significados preestabelecidos se misturam ao universo turvo da subjetividade humana. Nesse ato, não apenas nos abrimos ao novo, mas também lhe damos lugar em nosso mais íntimo interior. E então, percebemos que uma obra, como apontado por Didi-Huberman, se apresenta assim como as nuvens, que, para serem apreendidas, mesmo que nunca inteiramente, é preciso adivinhá-las em um processo constante de mutação, através do fragmento que ali se apresenta naquele momento e que é captado por nossa inconstante subjetividade.

São esses os vazios que, ao desafiarem as noções de espaço, beleza, narrativa e mímesis, abrem, não sem dor, imagens para novas possibilidades; que despertam em nós o prazer de, mesmo que por alguns minutos, abandonarmos os valores que tanto prezávamos. E, durante esse caminho, percebemos que as ausências, inclusive de respostas claras, que provavelmente nos incomodaram em um primeiro contato, não são mais um problema, pois a experiência de navegarmos por um caminho que antes sequer existia já se basta.

Mas essa experiência não encerra o processo de significação de uma obra. Tão pouco este se encerra quando temos acesso à intenção do artista, ou a uma interpretação sugerida por um “entendedor da arte”. Ao contrário. Considerado o ato de ver como um ato de sujeito, a obra poderá lhe despertar, a cada novo olhar, um novo significado, em um processo inquietante pelo seu próprio inacabamento, como a nuvem, nunca apreendida totalmente, como o alvo jamais atingido.

E aí, fica uma pergunta: ao voltar-nos para nossos antigos valores, após essa intensa e intrigante entrega ao desconhecido, os encontraremos intactos? Se tivermos sorte, não. E esse é um risco que correm apenas aqueles que aceitam perder “[...] a unidade de um mundo fechado para se encontrar na abertura desconfortável de um universo agora flutuante, entregue a todos os ventos do sentido” (Didi-Huberman, 2013: p. 186).

*Texto publicado no Blog do Espaço Vértice Cultural em 20.07.20.

Baseado no artigo “Imagens que se abrem, vazios que nos olham - dos incômodos da arte contemporânea”, publicado na Revista Ide - Sociedade Brasileira de Psicanálise - Nº 67/68 - v.41 - p.163 - 175. Dezembro de 2019.

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Bibliografia:

DIDI-HUBERMAN, Georges. O que vemos, o que nos olha. 2ª Ed. São Paulo: Editora 34, 2010.

______. Diante da Imagem: questões colocadas aos fins de uma história da arte. São Paulo: Editora 34, 2013.

FOUCAULT, Michel. As palavras e as coisas: uma arqueologia das ciências humanas. 7ª Edição. São Paulo: Martins Fontes, 1995.

FRAYZE-PEREIRA, João A. Arte, dor: inquietudes entre estética e psicanálise. Cotia, SP: Ateliê Editorial, 2005.

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