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Exposições “À Nordeste” e “Sertão”: Memórias vivas, novas narrativas





Ao refletir sobre os modos como diferentes povos constituem suas narrativas, o líder indígena, ambientalista e escritor Ailton Krenak (1953 – ) chama a atenção para uma distinção entre história e memória, partindo da seguinte proposição: os intelectuais da cultura ocidental, ao preocuparem-se em guardar a memória da humanidade em “caixotes”, como museus, arquivos, acervos e livros, acabam por transformar suas memórias em histórias, “fechando-as” no passado; já os povos indígenas concebem a memória a partir de um significado intrínseco à vida, mantendo-a sempre em suspensão no presente, através, por exemplo, dos rituais. Compreendendo, assim, a memória como um organismo vivo, esses povos tomam-na como meio para se buscar a fundação do mundo: “[...] quando nós narramos as histórias antigas nós criamos o mundo de novo” (KRENAK, 1996, p. 204).

O que já é tido como natural a esses povos, a nós, povos moldados pelo caráter universal europeu, começa a ganhar sentido apenas no século XX. No que tange às narrativas estabelecidas no campo da história da arte, vemos nos anos de 1920 alguns gestos indicativos de mudanças. Levando-se em conta a importância das instituições museológicas nesse processo, diretores de museus como Alexander Dorner (1893 – 1957) e Alfred Barr (1902 – 1981) propuseram exposições inovadoras, contribuindo para transformar o museu “[...] de um repositório de arte histórica em um lugar para exposições da arte contemporânea do período, um gesto que acaba por tentar reconfigurar o museu como uma extensão do mundo social” (TEJO, 2017, p. 11).

No Brasil, um dos nomes que contribuíram para essa mudança é Walter Zanini (1925 – 2013). Enquanto diretor do Museu de Arte Contemporânea da Universidade de São Paulo entre 1963 e 1978, a instituição tornou-se um fértil campo de experimentações, onde trocas entre o diretor e os artistas originaram ideias que “Ao serem levadas a outros contextos, [...] transformariam radicalmente as maneiras de conceber exposições e instituições nas décadas seguintes no Brasil” (FREIRE, 2013, p. 9).

Desse movimento, o museu rompe a barreira que o mantinha como um “caixote” armazenador de histórias: “Diferentemente do antigo museu, do museu tradicional que guarda, em suas salas, as obras primas do passado, o de hoje é, sobretudo, uma casa de experiências” (PEDROSA, 1995, p. 295).

Abrindo-se, assim, para experiências dadas no presente, os museus, em um primeiro momento, respondiam às novas situações e necessidades apresentadas por um novo fazer artístico, que tencionava cada vez mais as fronteiras entre arte e vida. Compreendida a partir da perspectiva atual, essa abertura apontou para um estreitamento da relação entre museus, bem como entre instituições culturais como um todo, e o meio social, de modo que esses espaços passaram a refletir e, ao mesmo tempo, potencializar as necessidades oriundas de um contexto social sensível a profundas revisões.

Imersos na atmosfera crítica que problematiza uma hegemonia cultural forjada por diretrizes coloniais/eurocêntricas, os museus colocam-se como peças fundamentais para que antigas narrativas, fixas em seu passado, sejam reescritas e transformadas: "Na última década, em diferentes pontos da América Latina e em países como Espanha e outros do Leste Europeu, desenvolveram-se investigaçöes que resgatam do esquecimento cenários, produções e artistas que nos obrigam a repensar os relatos inaugurais e canônicos do conceitualismo global e ainda hegemônico". (FREIRE, 2009, p. 9)

A partir desse movimento, povos e culturas até então com pouca, ou até mesmo sem representatividade no campo das artes, passaram a vislumbrar a possibilidade de reivindicar um espaço nesse meio, possibilitando, assim, que o sentimento de luta por uma sociedade mais igualitária, que permeia nosso presente, alimente o afloramento de memórias vivas e, consequentemente, de novas histórias.

Sob essa perspectiva, duas exposições, que permaneceram em cartaz no ano de 2019, podem ser tomadas como exemplares: À nordeste, ocorrida no Sesc 24 de Maio, da qual participaram 160 artistas não exclusivamente da região do nordeste, e Sertão, produzida para o 36ª Panorama de Arte Brasileira do Museu de Arte Moderna de São Paulo, com a participação de 29 artistas e coletivos de diversas regiões do país.

A ruptura de À nordeste já se deu no título: a crase, aplicada de forma “incorreta” de acordo com o que se estabeleceu por norma culta gramatical, reforça um sentido de localização geográfica. Através dessa “transgressão”, a palavra “nordeste” carrega tanto a noção de um povo e de uma cultura específica, quanto uma diferenciação incômoda, revelada quando o espectador é informado que o título da exposição partiu da provocação do artista cearense Yuri Firmeza, que levantou a seguinte questão: “À nordeste de quê?”. A pergunta, então, nos revela que a ideia de “diferente”, quando permeada por questões ideológicas que acentuam preconceitos, transforma-se em fator de exclusão e desigualdade.

A expografia também se impôs como um ato de ruptura. Em um cenário labiríntico, capaz de remeter o espectador a uma feira livre, Romero Brito misturava-se a Portinari, de modo que supostas hierarquias, sejam conceituais, ou de suporte, eram problematizadas. Assim, a riqueza artística de tudo que está “à nordeste” saltava aos olhos do espectador, apresentando-se como um grande movimento de resistência contra visões colonizantes, violentas, excludentes e patriarcais.

Já em Sertão, as provocações iniciaram-se chamando a atenção do espectador para o fato de que a palavra “sertão” foi trazida pelos colonizadores portugueses, que à época a utilizaram para designar territórios vastos, que não podiam ser percebidos da costa. Passando pelos diversos sentidos que adquiriu ao longo do tempo, a palavra foi, no contexto da mostra, compreendida como um “modo de pensar e de agir” (Julia Rebouças). Sob uma perspectiva mais ampla, portanto, “sertão” extrapola designações relacionadas a um local geográfico específico, e transforma-se em símbolo de resistência contra todo tipo de ideologia capaz de reforçar preconceitos.

A presença de duas artistas transgêneras entre os expositores e expositoras não apenas fortaleceu a importância de debates ainda canhestros na sociedade, como também tornou mais tangível a ideia de que o museu e a arte em geral devem absorver o conceito de habitat, assim como experienciado pelos indígenas, estabelecendo-se como locais “[...] onde a alma de cada povo, o espírito de um povo encontra a sua resposta, resposta verdadeira. De onde sai e volta, atualizando tudo, o sentido da tradição, o suporte da vida mesma” (KRENAK, 1996, p. 201).

Uma vez compreendidos a partir do conceito de memória viva, ou ainda, de extensão do mundo social, museus, instituições culturais e todos e todas que deles fazem parte, como historiadores, artistas, curadores e pesquisadores, ao narrarem, sob a latência do presente, histórias até então fixas em seus passados, são capazes de manter em suspensão campos de pensamento em constante gênese. E dessa ação – que turva cada vez mais as fronteiras entre arte e vida – as singularidades, sejam as associadas a grupos sociais, étnicos, de gênero, ou de raça, sejam as que habitam as subjetividades de um indivíduo, ganham espaço, abrindo caminho para “Novas práticas sociais, novas práticas estéticas, novas práticas de si na relação com o outro, com o estranho [...]” (GUATTARI, 2012, p. 55), e, consequentemente, para se inaugurar um novo mundo.



REFERÊNCIAS


FREIRE, Cristina; LONGONI, Ana (Orgs.). Conceitualismos do Sul / Sur. São Paulo: Annablume, 2009.

FREIRE, Cristina. (Org.). Walter Zanini: escrituras críticas. São Paulo: Annablume, 2013.

GUATTARI, Félix. As três ecologias. 21ª edição. Campinas, SP: Papirus, 2012.

KRENAK, Ailton. Antes, o mundo não existia. In: Novaes, A. (Org.). Tempo e História. São Paulo: Companhia das Letras, 1996.

LANDER, Edgardo. Ciências sociais: saberes coloniais e eurocêntricos. In: LANDER, E. (Ed.). A colonialidade do saber: eurocentrismo e ciências sociais: perspectivas latino-americanas. Buenos Aires: CLACSO, 2000.

PEDROSA, Mário. Arte experimental e museus. In: Arantes, Otília (Org.). Política das artes. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 1995.

TEJO, Cristiana. A gênese do campo da curadoria de arte no Brasil: Aracy Amaral, Frederico Morais, Walter Zanini. Tese (doutorado em sociologia). Centro de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Federal de Pernambuco, Recife, 2017.

Catálogo da Exposição Sertão. 36º Panorama de Arte Brasileira. Museu de Arte Moderna de São Paulo. São Paulo: Stilgraf. 2019.


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