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Avessos


Waltercio Caldas. Objeto de aço. Aço inox. 30 x 3 cm de diâmetro. 1978.


A densidade do corpo da obra garante-lhe uma distinção: do espaço ele se destaca claramente, e dessa diferenciação uma forma se delineia. Nenhuma estrutura indica que seu lugar não é o mesmo de quem a olha. Seu tamanho parece comunicar um desejo secreto de fazer parte do cotidiano, como um objeto que se entrega ao manuseio em prol de uma utilidade. O que restou da percepção habituada ao molde da objetividade cotidiana recua diante da impossibilidade de encaixar o objeto no mundo racional. Mas este parece já impingir ao objeto uma sutil dose de desprezo, o mesmo das quais usualmente investem-se as coisas inúteis.


Seu tamanho, somado à sutileza das formas, concede-lhe uma certa fragilidade. Mas sua frágil pequeneza dá morada também à hostilidade, oculta sob indubitáveis pontas. Sua fragilidade passa a ter a veracidade de uma ilusão. Ao mesmo tempo em que perfuram delicadamente o espaço em um ponto mínimo, as pontas são a concentração mínima de sua matéria. Espaço e obra tocam-se em seus mínimos.


Do aço inox polido desponta o ideal da pureza na impureza da materialidade. Os reflexos que desse estado emanam seguem o contorno da forma curva, desdobrando-se em múltiplas linhas que passam a compor a concretude de seu corpo. O objeto é agora o fundo sobre o qual se vê uma ilusória rugosidade, espelhada em uma de suas partes. Essa rugosidade, respeitando a clareza da peça, apresenta-se através de camadas bem delineadas, que proporcionam um movimento centrípeto. Sua forma exterior penetra cada vez mais seu interior. A latência orgânica que ali pulsa leva a um ponto no qual se concentra a gênese do mundo.


As mesmas camadas que conduzem o olhar ao centro do corpo da obra conduzem-no à sua extremidade. Um movimento entre avessos, que leva seu exterior ao seu interior e seu interior ao seu exterior, se estabelece. A ideia do avesso intensifica um outro movimento, que não se vê, mas se mostra por sua iminência. Da parte cônica e linear desdobrou-se a parte curva e orgânica, ou da curva e orgânica desdobrou-se a cônica e linear? Contrários expostos, como uma luva que se põe ao avesso. Duas partes que na verdade são uma. Avessos de um mesmo corpo.


Traços que cada uma das partes guarda em si denunciam que ambas são um só corpo. A forma interior da parte cônica conserva a circularidade da parte curva. Esta preserva a circularidade que habita o centro da parte cônica. Da pequena circunferência origina-se a parte curva. Na pequena circunferência, a parte curva penetra a cônica. As pontas são hostis; o movimento, suave. As sensações de dor e prazer entregam-se à intensidade daquilo que não se vê. A organicidade torna-se mais potente.


As formas que dão vida à parte curva estabelecem uma conexão íntima entre corpo-sujeito e corpo-obra, aproximados por índices que, em seu estado elementar, sustentam o que há de comum entre imagens que se mostram distintas a um olhar desatento. Sob a agudeza de seu ponto mínimo oculta-se a dor, e também toda a potencialidade que pode se concentrar em um único ponto. Vestígios de prazer pairam, mais fortes.


A parte cônica não parece ter a potencialidade que a curva tem. Talvez a sua imparcialidade tenha a mesma duração dos micro-tempos que então já agiram sobre os sentidos, despertados no fluxo de inconstâncias que permeou cada deslocamento ocular. O que ali se oculta repousa em um estado de porvir.


O olhar retoma o todo da forma. Da fragilidade apresentada inicialmente pouco restou. O desdém atribuído à sua aparente inutilidade dá lugar a um encanto, que surge de sua ousadia de, ao invadir o cotidiano, expor a fragilidade deste diante da impossibilidade, sob sua inabalável racionalidade, de dar conta de algo; ousadia de usar esse cotidiano para legitimar a sua liberdade de nada ser. Livre e ímpia, agora é ela quem sutilmente cobre o mundo com o véu do desprezo. Todo esse deleite tem ela, apenas ela, o privilégio de experimentar. Agora ela é maior do que qualquer um que ouse encará-la.



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