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O que nos olha


Waltercio Caldas. Sem título. Bronze, vidro e tinta acrílica. 70 x 55 x 20 cm. 1986.


O olhar depara-se com uma imagem que não oferece à percepção o conforto de um significado. Ele então percorre os elementos que prontamente se apresentam. Nesse curso, dois aspectos destacam-se: nitidez e opacidade. Uma marca gráfica turva impõe um constante esforço ocular em busca de foco. Diante da impossibilidade, o esforço encontra alívio ao repousar sobre a clareza que reluz da base.


Do movimento ao redor da obra, novos ângulos revelam detalhes antes ocultos. Estes emprestam ao objeto um caráter técnico, sob o qual elementos reúnem-se através de um construir objetivo. Duas placas de vidro dispõem-se paralelamente. A frontal tem sua materialidade envolta pela turbidez originária de seu acabamento fosco. A posterior, sobre a qual a marca circular apresenta-se, mantém a transparência natural do material. Vista por ângulos limitados pela pouca distância entre as placas, a marca tem seu traçado nítido, porém irregular. O intervalo entre suas extremidades, somado à irregularidade, contribui para um aspecto de inacabamento. Os vidros mantêm-se eretos por meio de um meticuloso encaixe em quatro hastes, com cerca de quinze centímetros de altura, que abraçam suas extremidades inferiores. Cada uma dessas hastes fixa-se em uma base através de quatro pequenos parafusos. Hastes e base são feitas de bronze.


Retomando-se a visão geral da obra, a união de distintos componentes traz ao aparecimento um objeto que apresenta uma unidade em harmonia, uma forma singular, envolta por uma atmosfera provocativa: um objeto, antes de tudo, artístico, imponente por sua perfeição, cujo corpo constitui-se de elementos ordinários. Em um mesmo objeto, concentra-se um estado de flutuação entre dois fazeres: um que o categoriza como obra artística, e um que o aproxima de qualquer objeto construído para atender a uma funcionalidade específica.


Os olhos voltam-se novamente para os detalhes. Elementos associados a uma arte tradicional tangenciam sutilmente esse objeto artístico contemporâneo. A irregularidade e o inacabamento da marca insinuam uma ação manual, executada em um artefato cuja verticalidade faz alusão a uma pintura. O bronze instituinte da base faz despontar uma associação aos bustos, que para atenderem aos seus propósitos exigem um material que garanta a mais clara representação do representado. Mas aqui, à função de representação nítida do mundo não resta alternativa senão contentar-se com o mero reflexo assegurado pelo brilho originário do material. A ideia do busto de bronze reforça não o que o objeto fitado pelos olhos é, mas aquilo que ele não é.


Distante da obra, horas depois, uma ligeira dor de cabeça (talvez oriunda do esforço ótico anterior) faz-se sentir. O corpo toma, então, consciência dele próprio. Reagindo à dor os olhos fecham-se, e passam a enxergar o avesso escuro da visão. Ali flutuam as costumeiras marcas gráficas circulares que pairam em algum lugar da retina quando os olhos fixam um foco de luz e, repentinamente, miram outro ponto, ou fecham-se. A surpresa é o elemento conector entre as marcas da memória e da obra, revelando a intensidade com que esse traço da obra estampou-se no corpo que a apreendeu. Ambas as marcas já não são mais o que outrora foram.


Em nova interação, a obra, através da marca, fita os olhos que a fitam. Corpo-sujeito e corpo-obra tornam-se cúmplices, pois a marca é, agora, um elemento que já pertencera ao corpo que a encara. A provocação antes concernente apenas à obra estende-se sobre a relação entre os dois corpos. A marca turva e o corpo que a encara penetram-se, como se de transparências fossem feitos. Paradoxalmente, o desconhecido apresenta-se tão familiar.


Os olhos retomam os detalhes da marca, vista sob o vidro fosco. O incômodo do desfoque faz o corpo mover-se. Um novo aspecto então emerge: as extremidades da linha que dá forma à marca, vistas de um determinado ângulo, parecem desfiar-se, assim como o fio de lã que, antes do desmanchar, parecia apenas um. Desse movimento, emerge uma surpresa: o desmanchar da linha desvela uma imagem que, mesmo envolta em turbidez, traz a referência do delinear de um olho com delicados cílios. Os fios desprendidos da espessura da linha reduzem o intervalo que garante a intocabilidade das duas extremidades. A distância diminui, mantendo-se. Assim intensifica-se um eterno estado de iminência sustentado por uma ilusão que da delicadeza se apraz. O gesto inacabado e a nitidez que falta deixam no ar vestígios de um eterno porvir. A cor da provocação intensifica-se.


O murmúrio que soa desse fluxo parece intenso demais diante de algo que, através de uma imagem que a nada se assemelha, flerta com o silêncio. Os sussurros então cessam, e os olhos voltam a mirar a figura como um todo. Agora, a forma é pura ótica, limpa e densa. Em um primeiro instante, o pensamento frui de um certo alívio garantido pelo silêncio. E, então, a existência de um lugar tão raramente acessado explicita-se: aquele que abriga o silêncio do qual costumeiramente se desvia; com o qual não se sabe lidar; sob o qual se oculta aquilo que foi abafado pelos ruídos da vida. O desconhecido passa então a se apresentar demasiadamente familiar.


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